Tradução de Francisco Silva

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O Martírio da Palestina Inverte o Mundo da Lei

Bassem Saad





Na noite de sexta-feira, 23 de outubro de 2023, assisti com perplexidade à emissão da Al Jazeera enquanto Israel bombardeava indiscriminadamente a Faixa de Gaza. As bombas caíam debaixo de uma escuridão total, produzida pelo poderio de Israel e pelo apagão nas telecomunicações. Cintilava um cenário esquizóide do mundo: uma metade do ecrã dividido acumulava imagens em direto da paisagem urbana de Gaza, enquanto a outra metade transmitia os procedimentos protocolares da Assembleia das Nações Unidas. 

Com uma maioria de mais de dois terços, os delegados das N.U. em Nova Iorque votaram a favor de uma resolução que exigia um cessar-fogo “imediato” e “duradouro”. Salvo algumas exceções aqui e ali, como a mão cheia de estados insulares clientes dos EUA, os opositores limitavam-se efetivamente a Israel e aos Estados Unidos. Mas se há um facto de que ainda me recordo do tempo em que participei no programa Modelo das Nações Unidas - em que estudantes do ensino secundário imitam a diplomacia internacional vestidos a rigor - é que as resoluções da Assembleia Geral das N.U. não são irrevogáveis. 

À época em que escrevo, deu-se mais uma votação em Assembleia Geral, com uma maioria a apelar de novo a um cessar-fogo. E, contudo, ainda não se garantiu um cessar-fogo que perdure. As autoridades israelitas propõem diariamente a transferência de populações. Algumas fontes estimam que o número total de palestinianos mortos (com algumas projeções a incluir preventivamente os milhares desaparecidos) ronde os 32 mil. Mas, já nessa noite do primeiro apagão, os delegados das N.U. pareciam tão impotentes face à guerra quanto eu me sentia ao assistir passivamente ao canal que é propriedade do estado Qatari. 

Três meses mais tarde surgia o histórico processo em que a África do Sul acusava Israel de genocídio no Tribunal Internacional de Justiça. O processo situa notavelmente o massacre em curso na longa história de deslocamento e extermínio do povo palestiniano desde 1948, quando 750.000 palestinianos foram expulsos de mais de 400 aldeias, um evento apropriadamente designado por Nakba. Este processo foi igualmente louvado por contornar os contextos cinicamente truncados que traçam o início da situação atual apenas até à ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, em 1967. 

A delegação sul-africana montou um caso meticulosamente documentado e argumentado, submetendo-o à Convenção das N.U. para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Israel respondeu colocando em causa os fundamentos da moção da África do Sul com base em meras tecnicalidades, não admitindo um único dia de historicização antes de 7 de outubro e invocando os mesmos tropos esfarrapados da sua conduta militar: escudos-humanos do lado do Hamas, e, do lado da IDF, os humanos panfletos de aviso largados do céu. Ouvir a delegação de Israel dizê-lo de novo: se o Hamas usa pelo menos um edifício residencial ou hospital para disparar rockets, então é permitido a Israel que, em sua própria defesa, bombardeie no mínimo todos os edifícios residenciais e hospitais em Gaza. 

O contra-argumento de Israel face à acusação de genocídio, citando as necessidades de autodefesa militar contra o terrorismo, já era de esperar. Dirk Moses, cujo trabalho se debruça sobre Genocídios, já havia apontado para a dificuldade em fazer coincidir a definição da Convenção das Nações Unidas para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (UNGC) - tal como modelada a partir do Holocausto - com os tipos de morte em massa infligidos até pelas ofensivas militares modernas mais deliberadamente exterminatórias. 

Como resultado, provar que uma campanha genocida pode ser conduzida através de ataques aéreos a alvos civis permanece uma dificuldade. São estas lacunas que Israel tentou explorar, apesar do número crescente de mortes. (No que a este número diz respeito, Israel quebrou o recorde do conflito mais mortífero do século 21, com uma média de 250 palestinianos mortos por dia em Gaza desde o início da guerra). A Palestina é de facto referida com frequência como a “exceção” ao consenso humanitário, mas talvez se possa pensá-la de forma mais construtiva como um caso-limite, deixando expostas as lacunas intrínsecas ao aparato dos direitos humanos internacionais. 

A Convenção do Crime de Genocídio foi estabelecida em 1948 pelos vencedores da II Guerra Mundial como um dos componentes centrais de um sistema legal internacional que em última instância salvaguardava o direito a declarar uma guerra para garantir a hegemonia destes países e a manutenção da sua segurança política e económica. Tal se deu no mesmo ano em que se estabeleceu o estado de Israel, tornado possível pela primeira Nakba. Foi também o ano em que 58 membros da Assembleia das Nações Unidas adotaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e em que se introduziu o conceito do “direito a ter direitos”, de Hannah Arendt, que surgiu primeiro em inglês num ensaio intitulado “The Rights of Men: What Are They?”

Examinando o conceito de direitos humanos tal como cristalizado na Declaração após a II Guerra Mundial, Arendt escreve que o homem do século 20 estava agora livre da “natureza” como outorgante de direitos depois da Revolução Francesa, assim como o homem (francês) do século 18 se havia libertado da contingência da “história” como outorgante de direitos. Agora, a “humanidade” era entendida como outorgante universal. Isto apontava para a contradição bem no seio da Declaração: instalar uma noção tão ampla quanto “a própria humanidade” como garante dos direitos não fazia nada pelos povos sem estado a quem eram negadas a agência e a participação nesta “humanidade” porque não possuíam uma comunidade política coerente e soberana. 

Antes de os Nazis poderem privar os judeus europeus do seu direito à vida, tiveram de os privar de um estatuto legal e de romper a sua ligação com o resto da humanidade confinando-os em campos e guetos, e garantindo que não pertenciam a mais lado nenhum no mundo organizado. O seu direito a ter direitos - que é o mesmo do que dizer o seu direito a pertencer a uma comunidade política que possa tentar fazer cumprir os seus direitos humanos - tinha primeiro de ser anulado. Arendt aponta de seguida para os limites das tentativas dos “humanitários mais bem-intencionados” de instituírem enquadramentos novos e universalizantes para os direitos humanos: ela dá conta de que apenas depois da restauração dos direitos legais nacionais dos judeus no estado de Israel podiam os seus direitos humanos ser restaurados. 

Em meados do século XX, enquanto os EUA ascendiam ao seu estatuto hegemónico global, veio a provar-se que havia outras instâncias em que a lei internacional se tornava “não-justiciável” - casos que não se predicavam na apatridia de uma dada população. A indeterminação constitutiva da lei internacional, o facto de não ser uniformemente aplicável, é exemplificada pela natureza revogável das resoluções da Assembleia Geral das N.U., bem como pela estrutura imperial e hierárquica, às claras, do Conselho de Segurança das N.U., o único organismo das N.U. capaz de determinar resoluções explicitamente irrevogáveis. 

Perry Anderson, num ensaio publicado na New Left Review intitulado “The Standard of Civilization”, fornece um conciso exemplo histórico desta indeterminação: instigando o conflito, os Estados Unidos usaram a NATO para lançar a guerra contra a Jugoslávia em 1998-1999. A intervenção prosseguiu mesmo depois de não terem conseguido engendrar uma resolução do Conselho de Segurança que autorizasse tal guerra, e em explícita violação da Carta das N.U., que proíbe guerras de agressão. O secretário geral das N.U., Kofi Anan, declarou que, ainda que as ações da NATO pudessem não ser “legais”, eram “legítimas”.

Anderson explica de seguida que o uso dos direitos humanos como “standard da civilização” é retoricamente consistente com a instrumentalização geoestratégica da lei internacional pelas potências hegemónicas mundiais. O presumível e/ou putativo respeito pelos direitos humanos de um dado país ou comunidade política - o seu nível de “civilização” - torna-se por sua vez o padrão para determinar se a comunidade internacional detém a responsabilidade de assegurar os direitos humanos do seu povo. Se Gaza está condenada a ser governada por uma organização terrorista islâmica, então os seus habitantes estarão na prática de fora da esfera dos direitos universais. 

Este “standard global da civilização” manifesta-se nos seus registos mais belicosos nos discursos de inúmeros chefes de estado em tempo de guerra, reiterando que os palestinianos massacrados em Gaza votaram no Hamas, ou desvalorizando o número de mortes citando a fonte da informação, o Ministério da Saúde gerido pelo Hamas. O obverso é, claro, aquela conversa sobre “nem todos os palestinianos serem o Hamas”, como se o facto de serem ou não seus apoiantes devesse determinar o extermínio imediato. 

Mas fora de tempos de guerra, o “standard” é promulgado de forma mais serena e sistemática em inúmeros documentos da diplomacia e da política internacional. A académica jurídica e marxista Ntina Tzouvala defende que a noção de “civilização” em lei internacional não é um conceito preciso e definitivo, mas antes um padrão de argumentação que cria condições para a inclusão de determinadas comunidades políticas racializadas no domínio da lei internacional. Em grande parte dos casos, o estatuto depende da incorporação do desenvolvimento capitalista. E, contudo, é precisamente esta imposição forçada no mundo periférico, alicerçada sempre na extração neocolonial e na troca desigual, que fomenta a proliferação de inúmeros tiranos locais, paramilitares de direita, clientelismo e economias de favorecimento, assim como outros sintomas semelhantes, considerados desqualificantes no standard global da civilização humana. 

Além das narrativas que descrevem o regime de direitos humanos como um standard civilizacional que opera através de divisões espaciais globais, há outras que questionam o seu uso predominante como um marcador temporal historicizante, declarando o fim organizado da era das lutas políticas militantes. Em After Evil: A Politics of Human Rights, Robert Meister destaca a singularidade deste Discurso hegemónico dos Direitos Humanos, consolidado depois da Guerra Fria e da queda do apartheid sul-africano, que reclama ter ultrapassado a “era das revoluções” no mundo Ocidental, iniciada com a Revolução Francesa e terminada na queda da União Soviética. 

Os militantes e intelectuais radicais dessa era das revoluções concebiam a justiça como uma luta permanente, ou como um limite assintotico de que nos devemos aproximar constantemente. Esta conceção militante da justiça choca com outra ideia de justiça, latente no Discurso dos Direitos Humanos, que compreende as questões políticas na sua maioria como já estabelecidas, e a resistência militante e a revolução categoricamente fora de questão. 

A ideia de justiça do Discurso dos Direitos Humanos como uma reconciliação advoga que as vítimas de injustiças passadas ou contínuas se devem reconciliar com uma ordem de realidade em que se permite que os beneficiários das injustiças passadas mantenham os seus despojos. Custe o que custar, não devem procurar derrubar essa ordem, mesmo que de forma não-violenta, porque essas vias estariam fadadas a iniciar outro ciclo de abusos dos direitos humanos. A justiça como reconciliação requereria, a um só tempo, que os palestinianos baixassem as suas armas e renunciassem à alegação de uma qualquer agressão, talvez negociando, em compensação, o direito a um regresso e à distribuição de riqueza, terras e bens-comuns na formação de um futuro estado. 

O processo falido de Oslo pode ser pensado como um exemplo falhado da justiça-enquanto-reconciliação, desde início condenado ao fracasso pelas egrégias concessões territoriais a Israel, pela coexistência de dois estados sem uma verdadeira soberania dos palestinianos, e pelo crescente domínio do aparelho israelita por ideólogos colonizadores de extrema-direita. Sob esta luz, torna-se claro que a diretriz dos direitos humanos é empunhada como um fuzil contra quaisquer vítimas “irreconciliadas”, que são de facto desumanizadas enquanto fanáticas e extremistas. Um exemplo perfeito é a demonização de toda e qualquer resistência palestiniana, num espectro que vai do movimento BDS à luta armada. 

Na boca dos Estados Unidos, em conjunto com a contínua Guerra ao Terror (invocada sempre que há o risco de forças islâmicas ameaçarem os interesses americanos no estrangeiro), os direitos humanos chegam a parecer mais afim de uma religião do que de uma lei uniformemente aplicável. De facto, Meister argumenta que a Declaração dos Direitos Humanos carrega consigo as marcas de uma religião mundial judaico-cristã secularizada que alega sobrepor-se numa escala global ao mal, ao pagão, e ao passado cíclico da revolução e da contrarrevolução. (No seu uso mais convencional, “judaico-cristão” é sinónimo de “civilização Ocidental”). Em jeito de provocação, Meister sugere que o inconsciente judaico-cristão do Discurso dos Direitos Humanos se manifesta na sua universalização do sofrimento judeu no Holocausto como precursor sacrificial de uma nova era, de alguma maneira análoga à prévia descrição de São Paulo do nascimento do cristianismo através da universalização do sofrimento de Cristo, o Messias Judeu. O mais grotesco problema do Discurso dos Direitos Humanos é acompanhar uma ordem global que permite que Israel seja a exceção mais gritante ao humanitarismo ocidental do século 21 - alimentando antigas e novas variedades de antissemitismo, que tomam o povo judeu por excecional ou intrinsecamente maligno. 

Na descrição de Meister, os princípios cardinais do Discurso dos Direitos Humanos afirmam que as vítimas de atrocidades passadas são passivas e inocentes, que os perpetradores são a mão cheia de líderes julgados em Nuremberga ou em Haia, e que grande parte dos beneficiários da injustiça pode manter os seus benefícios se reconhecer que a atrocidade pertence a um tempo que deve ser atirado para o passado. Não há nenhum sítio em que isto seja tão claro quanto na Alemanha atual. 

Neste país, a cultura pós-reunificação de memória do Holocausto (Erinnerungskultur) revestiu precariamente um processo de desnazificação no melhor dos cenários grosseiramente incompleto, e ativamente minado, no pior, especialmente na antiga RFA. Esta instância da justiça-como-reconciliação é agora suplantada pela noção nebulosa de que a segurança de Israel é a razão de estado da Alemanha (Staatsräson), como articulava a chanceler Angela Merkel e reiterava Olaf Scholz. A Staatsräson tornou-se um pilar do debate nacional alemão na sequência do 7 de outubro. 

Declarando o seu apoio incondicional a Israel enquanto este trava uma guerra contra uma população civil sitiada, os humanitaristas liberais alemães empatizam e identificam-se com os judeus europeus enquanto vítimas inocentes abstratas e idealizadas. A Alemanha tem sido tão ostensivamente isentada da sua “questão judaica”, que os comentadores do país chegam ao ponto de dizer que, pelo seu firme apoio a Israel, a Alemanha é agora ela própria vítima de antissemitismo.

Aos israelitas, contudo, não é permitido este tipo de isenção pelos palestinianos. A Nakba, que fundou o estado de Israel, não foi suficientemente bem-sucedida na sua resolução da “questão árabe”, e por isso os palestinianos permanecem uma maldição aos olhos do etnoestado. Meister refere que o historiador israelita Benny Morris - cujo trabalho documenta exaustivamente a limpeza étnica de mais de 700.000 palestinianos na Nakba, ainda que com omissões e obscurações - admitiu que era preferível que Ben-Gurion tivesse terminado o trabalho e eliminado todos os palestinianos, do rio ao mar. Seguindo esta lógica, Morris explica que teria sido pelo melhor se, no presente, os israelitas pudessem comemorar uma Nakba mais total, considerando-a um sacrifício necessário para uma Israel livre da “questão árabe”, e remetendo-a firmemente, enfim, para o passado. 

Quanto aos palestinianos que foram de facto erradicados pela Nakba e suas variantes em curso, incluindo o atual assalto a Gaza: são identificados como mártires pelos palestinianos que lhes sobrevivem, hipotecando o seu estatuto de vítimas passivas de uma atrocidade passada. Em vez de uma oferenda sacrificial para um pacto nacional israelita, os movimentos de resistência palestinianos reclamam-nos como mártires no caminho para a libertação nacional. O martírio* recusa fazer da passividade e da inocência pré-requisitos para que se reconheça a vitimidade**. Insiste que uma morte teve lugar na luta.

Note-se o mal-estar político e epistémico, das reticências da esquerda à total repulsa racista, em resposta ao discurso da resistência palestiniana – com a sua ênfase no martírio e a proeminência do Islamismo nas suas fileiras – em grande parte das esferas públicas ocidentais. Não há necessidade ou espaço para perdermos tempo com as respostas da direita à retórica da resistência palestiniana, mas múltiplas correntes de esquerda têm consistentemente rejeitado os termos da luta estabelecidos pelos próprios palestinianos, sobretudo na sequência do 7 de outubro. Algumas personalidades de esquerda têm expressado o seu desconforto em relação ao discurso do martírio pela sua ênfase excessiva na busca de um significado para a morte, mesmo quando acreditam na verdade da luta palestiniana. Outras admitiram que seria bem mais fácil manifestar a sua solidariedade com a luta armada palestiniana se esta não tivesse acabado sob domínio de islâmicos, depois do declínio das facções seculares de esquerda.

Outras ainda recomendaram simplesmente que os palestinianos participem em “políticas de massa organizadas e democráticas”, ao invés da mobilização armada, contornando a ausência de um corpo político contíguo que não seja destruído pelo apartheid colonial, mesmo nos períodos mais pacíficos. Há, ainda, a recente carta aberta da “Leftist Renewal”, que considera reacionária qualquer “acomodação ao islamismo” entre a esquerda, que estaria assim a ignorar por completo os anais da ética da esquerda árabe na sua relação com o Islamismo e a tapar os olhos para o facto de a maioria dos que escolhem resistir em Gaza através da luta armada o fazem sob a bandeira islâmica. 

Mais direto ao ponto foi o apelo de Joshua Leifer para uma esquerda “humana”, feito na esteira do ensaio de 2002 de Michael Walzer “Can There Be a Decente Left?”, que tinha a pretensão de insistir “na possibilidade, no imperativo moral, de contornar o que os outros consideram ser os trilhos da história,” contra a suposta sede de sangue pristina de certos quadrantes da esquerda que não repudiaram de imediato a resistência palestiniana armada depois de 7 de outubro. O que Leifer não chega a admitir é que os “trilhos da história” não corriam exatamente de acordo com um plano-mestre do Hamas ou da esquerda quando o 7 de outubro ocorreu. 

Leifer parece querer que toda e qualquer pessoa de esquerda, sobretudo as que se encontram num núcleo imperial, proclamem a sua própria humanidade e pureza moral como pré-condição para tomar partido no discurso, excluindo qualquer explicação histórica para os colonizados e sitiados terem recorrido à violência. (Outro facto que Leife parece não considerar é que o apelo de Walzer à “decência” foi feito contra pessoas de esquerda que se opuseram à guerra no Afeganistão: “a decência”, tal como a “humanidade”, apenas se aplica aos que já se situam no interior do standard global da civilização.)

Estas respostas variam e não devem ser misturadas. Mas todas elas tentam transmitir um idealismo humanitário a priori, que não admite as realidades concretas da sua própria inaplicabilidade ao e instrumentalização pelo império, enquanto compromisso permanente com um humanismo moral e secular. O meu ponto é que estas propostas obscurecem a luta por uma Palestina livre – e são confusas na mesma medida em que as reações ao discurso do martírio palestiniano, acompanhando tanto as lutas armadas como as não-violentas, seculares e islâmicas, podem ser esclarecedoras. 

Entre civilizados, encontra-se sempre um excesso no discurso do martírio: é demasiado anacrónico, ideológico, culturalmente específico, transparente quanto à sua pulsão de morte, demasiado realista quanto ao desequilíbrio de forças na batalha, desdenhoso da inocência das vítimas e da simpatia humana que esta pode suscitar. É este aparente excesso do discurso sobre o martírio que deve ser explicado perante as falhas atuais do humanitarismo em Gaza. 

Em 1972, Ghassan Kanafani, um dos líderes do movimento secular marxista, revolucionário e socialista FPLP, não exagerava quando outorgou ao Sheik Izz al-Din al-Qassam o que ele dizia ser o sentido revolucionário “guevarista” de martírio na luta palestiniana. No seu panfleto do mesmo ano, “The 1936-39 Revolt in Palestine”, Kanafani atribui a al-Qassam, e ao movimento Qassamista de 12 a 19 de novembro de 1935, um papel central no decorrer da revolta de finais da década de 1930, assim como na luta mais ampla pela libertação nacional. 

Aos seus seguidores – em geral agricultores despossados pela aquisição sionista de terras e pela imposição de políticas de trabalho exclusivamente judaicas – o sacerdote sírio, educado em Al-Azhar no Egito, transmitiu o projeto então inédito de combinar a libertação nacional e a religiosa. Ao contrário da maioria da liderança nacionalista palestiniana, que nessa altura evitava o confronto com a autoridade britânica mandatária, al-Qassam defendia uma oposição tanto às forças britânicas quanto à expansão sionista. 

Kanafani escreveu que, de acordo com muitos relatos, al-Qassam mal tinha começado a espalhar a palavra a favor da revolta armada quando foi descoberto com os seus homens nas montanhas de Ya’bad, oeste de Jenin, a 12 de novembro. Enfrentando uma derrota quase certa, implorou aos seus homens que “morressem como mártires”. No funeral de Al-Qassam compareceram primeiro os seus seguidores mais pobres. Mas nas semanas seguintes, a liderança tradicional do movimento nacional não podia mais manter-se indiferente à mobilização popular gerada pelo assassinato de al-Qassam, decidindo, assim, participar nas demonstrações de massas e nos discursos que decorreram quarenta dias após a sua morte. Os eventos subsequentes ficariam conhecidos como a Grande Revolta Palestiniana. 

Um dos propósitos de recuperar este breve episódio da década de 1930 do movimento Qassamista é sublinhar que, desde a Nakba, as facções islâmicas organizadas foram sempre uma parte inextricável da luta palestiniana. Serve também para enfatizar que a estima de Kanafani por al-Qassam é um exemplo das variadas e complexas formas que os movimentos da esquerda árabe desenvolveram ao longo dos anos para lidar com os movimentos islâmicos seus contemporâneos. No melhor dos casos, estas aproximações são a um só tempo críticas e pragmáticas, raramente se transformando em condenações morais generalizadas ou rejeições idealistas. 

Outro propósito é apontar para uma genealogia de longa data do martírio palestiniano, baseada no confronto concreto com um opressor imperial de longe muito mais poderoso. O martírio palestiniano atravessa a fronteira entre o secular e o teológico, estreitando a lacuna deixada pela ausência do direito a ter direitos. Reconhece que a vida e a morte palestinianas não são governadas por um regime ou comunidade política da sua autoria, em que os seus direitos possam ser codificados e exercidos. É simultaneamente um modo de ação pragmática e um método de elogio fúnebre: até o colonizador deixar de governar a comunidade política, o martírio existe antes e depois de cada morte injusta.

Tanto a etimologia árabe como a grega do termo, shahada e martur, implicam um ato de testemunho. Deixa-se por interpretar se os mortos são testemunho apenas da injustiça terrena ou se são também testemunhados por Deus no seu falecimento. Mas os mártires são certamente testemunhados por aqueles que pertencem à comunidade política que deixam para trás. Como um método de elogio fúnebre, o martírio forja uma continuidade entre aqueles que morrem na batalha e aqueles que morrem levando uma vida comum, recusando-se a abandonar a terra, se chegarem sequer a ter essa opção. 

É por estas razões que a afirmação do martírio não é congruente na totalidade com o luto enquanto dever humanitário e ético. O escritor palestiniano Abdaljawad Omar, escrevendo em resposta à proposta de Judith Butler para se alargar a “bússola do luto” de forma a que esta também incorpore a vida palestiniana, encontra lacunas na sua tentativa de uma inclusão ética. O gesto de Butler do luto ético requer um nivelamento das diferenças de poder, com o ato de inclusão a mover-se centrifugamente a partir da metrópole, onde a académica se senta voltada para a periferia em que se trava a luta pela libertação. 

Reconhecer e fazer ecoar os métodos elegíacos que os próprios palestinianos encontraram para os seus mortos é reconhecer que o luto comum é com frequência tornado impossível pelo colonizador. Pode ser também propositadamente adiado ou confinado à porta fechada. Somos lembrados da longa tradição de mães palestinianas regozijando-se e ululando nos funerais da sua prole mártir, recusando mostrar tristeza em público debaixo do olhar do colonizador. Uma afirmação do mártírio rejeita a falta de sentido da morte, insistindo que uma morte individual é parte de um movimento coletivo rumo à libertação. O luto pode igualmente decorrer depois da libertação: apenas nessa altura poderá existir um sofrimento público onde anteriormente existiam só as ululações das enlutadas. 

O direito ao luto é somente um de outros direitos que são adiados na ausência do direito a ter direitos. Enquanto isso, o martírio sutura a comunidade política rompida pelas soluções de estado do colonizador. Independentemente do Tribunal Internacional de Justiça reconhecer ou não o assalto a Gaza como um genocídio, há uma linhagem na Palestina que não pode ser quebrada por Israel: Al-Qassam é um mártir, Ghassan Kanafani é um mártir, Shireen Abu Aqleh é um mártir, Hiba Abu Nada é um mártir, Refaat Alareer é um mártir, e cada rapariga e rapaz mortos em suas casas terão sido martirizados.

A resistência e o martírio palestinianos invertem o mundo da lei humana – mesmo quando, e precisamente porque, são as vísceras do ser humano. Que consigam inaugurar uma nova lei humana.  
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* Martyrdom no original. A palavra martírio é usada com frequência num contexto figurado, "que martírio", e essa é uma reticência óbvia nesta passagem para português. Uma das funções do texto de Bassem é também contextualizar, desdobrar e localizar esta palavra no massacre em curso do povo palestiniano. Num cenário ideal, a nossa tradução acompanha esse movimento (NT).
** Victimhood no original. Não havendo propriamente um termo correspondente em português, as opções de tradução representam aproximações. O caminho a seguir é determinado pelo contexto. Neste caso, rejeitando desde logo vitimação e vitimismo, a única solução válida parece-nos ser vitimidade (condição de, estado de) (NT).

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5 junho 2024
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